É legítimo exigir a quitação de débitos fiscais como condição à expedição do Certificado de Licenciamento Anual de veículo automotor
Nosso plano de Questões Discursivas traz, a cada semana, 4 (quatro) novas questões de caráter dissertativo, sempre inéditas e exclusivas, para serem respondidas pelos nossos alunos e, na sequência, corrigidas e avaliadas pelos nossos professores, com a seleção das melhores respostas.
Em recente rodada, uma das questões veio assim formulada:
(EMAGIS) Configura sanção política exigir a quitação de débitos fiscais como condição à expedição do Certificado de Licenciamento Anual de veículo automotor? Responda fundamentadamente em até 20 (vinte) linhas.
Confira, abaixo, uma síntese dos comentários preparados pelos nossos professores:
Sabemos que o Supremo Tribunal Federal possui entendimento consolidado, e de longa data, no sentido de que se revela inconstitucional o uso, pelo Estado, de meio indireto coercitivo para compelir o contribuinte ao pagamento de tributos (o que caracteriza a chamada “sanção política”). A propósito, cabe mencionar a antiga Súmula nº 70, aprovada na Sessão Plenária de 13/12/1963, bem como a Súmula nº 323, editada na mesma assentada, e, ainda, o verbete sumular nº 547, aprovado em 03/12/1969, cujos enunciados reproduzimos a seguir:
Súmula nº 70: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.”
Súmula nº 323: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.”
Súmula nº 547: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”
Conforme destacado no voto-líder proferido pelo Ministro Joaquim Barbosa no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 173/DF, nota-se que a Suprema Corte “possui uma venerável linha de precedentes que considera inválidas as sanções políticas”. O ilustre Relator esclarece: “Entende-se por sanção política as restrições não-razoáveis ou desproporcionais ao exercício de atividade econômica ou profissional lícita, utilizadas como forma de indução ou coação ao pagamento de tributos. Como se depreende do perfil apresentado e da jurisprudência da Corte, as sanções políticas poder assumir uma série de formatos. A interdição de estabelecimento e a proibição total do exercício de atividade profissional são apenas os exemplos mais conspícuos.”
Por oportuno, colacionamos o seguinte trecho da ementa do precedente acima:
“CONSTITUCIONAL. DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO AO JUDICIÁRIO. DIREITO DE PETIÇÃO. TRIBUTÁRIO E POLÍTICA FISCAL. REGULARIDADE FISCAL. NORMAS QUE CONDICIONAM A PRÁTICA DE ATOS DA VIDA CIVIL E EMPRESARIAL À QUITAÇÃO DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS. CARACTERIZAÇÃO ESPECÍFICA COMO SANÇÃO POLÍTICA. AÇÃO CONHECIDA QUANTO À LEI FEDERAL 7.711/1988, ART. 1º, I, III E IV, PAR. 1º A 3º, E ART. 2º. [...] Caracterização de sanções políticas, isto é, de normas enviesadas a constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário. 3. Esta Corte tem historicamente confirmado e garantido a proibição constitucional às sanções políticas, invocando, para tanto, o direito ao exercício de atividades econômicas e profissionais lícitas (art. 170, par. ún., da Constituição), a violação do devido processo legal substantivo (falta de proporcionalidade e razoabilidade de medidas gravosas que se predispõem a substituir os mecanismos de cobrança de créditos tributários) e a violação do devido processo legal manifestado no direito de acesso aos órgãos do Executivo ou do Judiciário tanto para controle da validade dos créditos tributários, cuja inadimplência pretensamente justifica a nefasta penalidade, quanto para controle do próprio ato que culmina na restrição. É inequívoco, contudo, que a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal não serve de escusa ao deliberado e temerário desrespeito à legislação tributária. Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial. Para ser tida como inconstitucional, a restrição ao exercício de atividade econômica deve ser desproporcional e não-razoável. [...]” (STF, Tribunal Pleno, ADI 173/DF, Rel. Ministro Joaquim Barbosa, DJe-053 publicado em 20/03/2009)
Assinale-se que essa orientação da jurisprudência restou confirmada em teses de repercussão geral. No ano de 2014, por ocasião do exame do Recurso Extraordinário nº 565.048/RS (Rel. Ministro Marco Aurélio, DJe-197 publicado em 09/10/2014), fixou-se a seguinte tese (Tema nº 031): “É inconstitucional o uso de meio indireto coercitivo para pagamento de tributo – ‘sanção política’ –, tal qual ocorre com a exigência, pela Administração Tributária, de fiança, garantia real ou fidejussória como condição para impressão de notas fiscais de contribuintes com débitos tributários” (redação aprovada na Sessão Administrativa do STF de 09/12/2015).
Demais disso, no ano de 2015, quando da apreciação do Recurso Extraordinário nº 914.045/MG (Rel. Ministro Edson Fachin, DJe-232 publicado em 19/11/2015), o Plenário da Excelsa Corte reafirmou sua compreensão quanto à inconstitucionalidade das “sanções políticas”, estabelecendo esta tese (Tema nº 856): “I - É desnecessária a submissão à regra da reserva de plenário quando a decisão judicial estiver fundada em jurisprudência do Plenário ou em Súmula deste Supremo Tribunal Federal; II - É inconstitucional a restrição ilegítima ao livre exercício de atividade econômica ou profissional, quando imposta como meio de cobrança indireta de tributos” (aprovada na mesma Sessão Administrativa adrede indicada).
Pois bem. A matéria em desate nesta questão diz respeito a disposições do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997), em especial nos seus artigos 124 (inciso VIII), 128, 131 (§ 2º), tendo presente que “Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, para transitar na via, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado” (art. 130 do CTB). Eis o teor dos preceitos legais referidos:
“Art. 124. Para a expedição do novo Certificado de Registro de Veículo serão exigidos os seguintes documentos: [...] VIII - comprovante de quitação de débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas; [...] Art. 128. Não será expedido novo Certificado de Registro de Veículo enquanto houver débitos fiscais e de multas de trânsito e ambientais, vinculadas ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas. [...] Art. 131. O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN. [...] § 2º O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas.”
Certo é que o Supremo Tribunal foi provocado a analisar a compatibilidade constitucional dessas prescrições normativas em sede de controle concentrado. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.998/DF, proposta no ano de 2003 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sob a alegação, em apertada síntese, de ofensa ao direito de propriedade e ao devido processo legal.
Apreciado recentemente o mérito do processo objetivo, o Plenário da Corte, por expressiva maioria, declarou a constitucionalidade dos arts. 124, inciso VIII, 128, e 131, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro, apontando que “a circulação de veículo pressupõe o atendimento de formalidades legais e, por isso, a renovação da licença se dá anualmente”. Foi reconhecido que tais normas da Lei nº 9.503/1997 não cerceiam o direito de propriedade e, tampouco, traduzem “coação política com o propósito de arrecadar o que é devido”, tratando-se de “dados inerentes às sucessivas renovações do certificado de registro do veículo junto ao órgão competente” (trecho da notícia publicada no site do STF na internet em 10/04/2019).
Assim, consoante a posição do Pretório Excelso, não configura sanção política a exigência legal de quitação de débitos (tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo) como condição à expedição do Certificado de Licenciamento Anual de veículo automotor. A síntese do julgado foi divulgada no Informativo STF nº 937, com a qual finalizamos estes breves comentários:
“O Plenário, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em ação direta para declarar a constitucionalidade dos arts. 124, VIII, 128, e 131, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Além disso, deu interpretação conforme a Constituição ao art. 161, parágrafo único, do CTB, para afastar a possibilidade de estabelecimento de sanção por parte do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) e, por decisão majoritária, declarou a nulidade da expressão "ou das Resoluções do Contran" constante do art. 161, caput, do CTB, bem como reputou prejudicado o pleito referente ao art. 288, § 2º, do CTB. O requerente alegou a inconstitucionalidade dos referidos dispositivos por afronta ao princípio do devido processo legal e violação do direito de propriedade, por condicionarem a utilização de veículo automotivo ao pagamento de débitos relativos a tributos, encargos e multas a ele vinculados, independentemente da responsabilidade das infrações cometidas. Asseverou, também, a incompatibilidade do parágrafo único do art. 161 do CTB com o disposto no art. 5º, II, da Constituição Federal (CF), pois a possibilidade de edição, pelo Contran, de resoluções com previsão de sanções administrativas sem a instauração do correspondente processo administrativo violaria o princípio da legalidade. O Tribunal entendeu que as exigências contidas nos arts. 124, VIII, 128, e 131, § 2º, não limitam o direito de propriedade, tampouco constituem-se coação política para arrecadar o que é devido, mas de dados inerentes às sucessivas renovações dos certificados de registro do automóvel junto ao órgão competente, para a liberação do trânsito de veículos. Vencido o ministro Celso de Mello, que julgou procedente o pedido por vislumbrar sanção política. Para o ministro, o Estado não pode valer-se de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles e mediante interdição ou restrição ao exercício de uma atividade lícita de natureza econômica ou de caráter profissional, constranger o contribuinte a adimplir obrigações eventualmente em atraso. Em relação ao art. 161, o colegiado conferiu interpretação conforme a Constituição, para declarar inconstitucional a possibilidade do estabelecimento de sanção por parte do Contran, como se órgão legislativo fosse, visto que as penalidades têm de estar previstas em lei em sentido formal e material. Assim, por ato administrativo secundário, não é possível inovar na ordem jurídica. A Corte declarou, ainda, a nulidade da expressão “ou das Resoluções do Contran” constante do art. 161, caput, do CTB, pelos mesmos motivos. Vencidos, no ponto, os ministros Marco Aurélio (relator), Edson Fachin, Roberto Barroso e Rosa Weber, por entenderem que o art.161, por si só, não é conflitante com a Constituição Federal, uma vez que ele remete às infrações previstas no CTB. Por fim, foi declarada a prejudicialidade do pedido quanto ao §2º do art. 288 do CTB, em razão de esse parágrafo já ter sido revogado. Vencido o relator, que, à mingua de informação sobre a revogação do dispositivo, considerou o dispositivo inconstitucional. Ponderou que conflita com noções próprias ao direito de defesa e ao devido processo legal administrativo impor ao responsável por infração o recolhimento do valor de multa para sua impugnação e para admissão de recurso. [...] ADI 2998/DF, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 10.04.2019. (ADI-2998)”
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