Sacrifício ritual de animais em cultos religiosos: constitucionalidade
Nosso plano de Questões Discursivas traz, a cada semana, 4 (quatro) novas questões de caráter dissertativo, sempre inéditas e exclusivas, para serem respondidas pelos nossos alunos e, na sequência, corrigidas e avaliadas pelos nossos professores, com a seleção das melhores respostas.
Em recente rodada, uma das questões veio assim formulada:
(EMAGIS) Imagine que lei de certo Estado da Federação, ao instituir Código Estadual de Proteção aos Animais, tenha ressalvado e autorizado o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matiz africana.
A Procuradoria-Geral da República, então, ingressou com ação direta de inconstitucionalidade na qual alega, basicamente, dois pontos: (a) haveria inconstitucionalidade formal do diploma em liça por imiscuir-se em matéria de cunho penal, de competência legislativa da União, uma vez que, ao autorizar o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matiz africana, estaria descriminalizando essa conduta, alcançada que é por tipo penal da Lei 9.605/98; (b) existiria inconstitucionalidade material dessa lei estadual ao permitir que animais sejam submetidos a crueldade, algo proibido expressamente pela CF/88.
Diante da situação posta, indaga-se: há inconstitucionalidade, formal e/ou material, na lei estadual elucubrada? Responda fundamentadamente em até 20 (vinte) linhas.
Confira, abaixo, uma síntese dos comentários preparados pelos nossos professores:
Iniciando a abordagem do tema, cabe perpassar as prescrições de nossa Lei Maior pertinentes para o deslinde da questão, para que possamos aferir a compatibilidade constitucional de semelhante diploma normativo. Na sequência e de modo pragmático, vamos expor a posição chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, de logo assinalando que a Corte, majoritariamente, fixou compreensão no sentido de que “É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”.
Conforme revela o enunciado, argumenta-se que tal lei editada por Estado-membro, instituindo o assim chamado Código Estadual de Proteção aos Animais, seria formal e materialmente inconstitucional.
Sob o prisma da inconstitucionalidade formal (item “a”), o diploma legal traduziria usurpação da competência legislativa privativa da União, nos moldes do art. 22, I, da Constituição da República. No ponto, ventila-se que a lei estadual autorizando o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana acabaria por descriminalizar a conduta típica prevista no art. 32 da Lei nº 9.605/1998 (não se ignorando, ainda, a norma do art. 64 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 – Lei de Contravenções Penais).
Em relação a este aspecto, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 494.601/RS (acórdão pendente de publicação), que lei estadual com esse conteúdo não trata de matéria criminal, mas, sim, de disciplina sobre o meio ambiente, mais especificamente sobre a proteção da fauna. Trata-se, a bem da verdade, de regra que exclui a responsabilização administrativa na hipótese de sacrifício ritual de animais (abate em cultos religiosos) e cujos efeitos se exaurem no âmbito da matéria regulada pelo “Código Estadual de Proteção aos Animais”, sendo perceptível que a previsão normativa não cria excludente de ilicitude penal ou afasta a incidência das disposições penais em casos concretos e específicos, uma vez preenchidos os respectivos pressupostos (suporte fático).
Para além disso, anotou-se que sequer é possível divisar violação à competência da União para editar normas gerais sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, inciso VI, da CRFB). Aqui deve ser observado que a Constituição da República, ao traçar o regramento acerca da competência legislativa concorrente confiada à União, aos Estados e o Distrito Federal, estabeleceu regras tendentes a harmonizar o exercício desse mister, em ordem a evitar conflitos ou antinomias normativas.
Numa visão geral, verifica-se que o constituinte originário reservou à União apenas a competência para editar normas gerais neste âmbito legislativo, não excluindo a competência suplementar dos Estados, além de lhes assegurar, acaso não editadas as normas gerais pelo ente federal, a possibilidade de exercer a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades (o que a doutrina costuma identificar como competência suplementar ‘complementar e supletiva’). Confira-se a jurisprudência do Pretório Excelso:
“[...] 1. A competência legislativa concorrente cria o denominado “condomínio legislativo” entre a União e os Estados-Membros, cabendo à primeira a edição de normas gerais sobre as matérias elencadas no art. 24 da Constituição Federal; e aos segundos o exercício da competência complementar — quando já existente norma geral a disciplinar determinada matéria (CF, art. 24, § 2º) — e da competência legislativa plena (supletiva) — quando inexistente norma federal a estabelecer normatização de caráter geral (CF, art. 24, § 3º). 2. Inconstitucionalidade formal de norma estadual que, de caráter pleno e geral, permite a edificação particular com finalidade unicamente recreativa em áreas de preservação permanente – APP; apesar da existência de legislação federal regente da matéria (Código Florestal) em sentido contrário. [...]” (STF, Tribunal Pleno, ADI 4.988/TO, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, DJe-213 publicado em 05/10/2018)
Quanto ao tema versado nesta questão, ponderou-se que inexiste lei federal dispondo sobre a matéria (sacrifício de animais em cultos religiosos), o que legitima o exercício da competência estadual plena para regulação do assunto, à luz do art. 24, §§ 2º e 3º, de nossa Lei Maior.
No plano da inconstitucionalidade material (item “b”) do enunciado deste exercício), o vício apontado residiria na permissão a que os animais sejam submetidos a crueldades (no caso do “sacrifício ritual”), algo não tolerado pela Carta Política.
Por certo o deslinde da controvérsia exige a ponderação de valores e normas alicerçados no texto da Constituição Federal. Em destaque, de um lado, o direito fundamental de liberdade religiosa (art. 5º, inciso VI) – também podemos mencionar a liberdade de cultos (art. 19, inciso I – vedando que os entes políticos embaracem o funcionamento de cultos religiosos ou igrejas) –, aliado ao dever estatal de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais (art. 215, caput), protegendo as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (§ 1º do mesmo dispositivo). De outro lado, para assegurar a efetividade do direito fundamental ao meio ambiente, temos o dever imposto ao Poder Público de: “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (art. 225, caput e § 1º, inciso VII).
Nesse contexto, restou assinalado pelo Supremo Tribunal que, na colisão de direitos fundamentais e ponderação de valores, não se pode permitir que a tutela do meio ambiente sobrepuje e aniquile o exercício de outro direito fundamental das pessoas, na espécie, a liberdade religiosa (considerados os cultos que professam e as liturgias que praticam).
Consoante o voto proferido pelo Ministro Edson Fachin (redator para o acórdão), a jurisprudência da Suprema Corte tem assentado que “a obrigação constitucional do Estado de assegurar a todos os cidadãos o pleno exercício de direitos culturais, promovendo a apreciação e difusão de manifestações culturais, não exime o Estado de observar o dispositivo constitucional que proíbe o tratamento cruel de animais” (STF, Segunda Turma, RE 153.531/SC, Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Aurélio, DJ de 13/03/1998, p. 13). Assim, foram tachadas de ilegítimas, por atentatórias à Constituição da República, práticas que submetem os animais a crueldades, como a denominada “farra do boi”, os diplomas legais que se propunham a regulamentar a “briga de galos” e, mais recentemente, a prática da “vaquejada”.
Pontuou o eminente Ministro Edson Fachin, inclusive em face do regulamento técnico de métodos de insensibilização para o abate humanitário de animais de açougue editado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Instrução Normativa nº 3/2000), que “não parece plausível sustentar que a prática de rituais com animais subsuma-se ao dispositivo constitucional que proíbe as práticas cruéis com animais”. Demais disso, registrou que “é preciso reconhecer que a prática e os rituais relacionados ao sacrifício animal são ‘patrimônio cultural imaterial’, na forma do disposto no Artigo 2, item 2, alínea ‘c’, da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco”, diretriz que se relaciona com a “obrigação imposta ao Estado brasileiro relativamente às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, nos termos do art. 215, § 1º, da CRFB.”
A conclusão do julgamento do Recurso Extraordinário nº 494.601/RS, no qual debatida essa relevante controvérsia constitucional, foi noticiada recentemente no Informativo STF nº 935, cujo teor nos permite aferir o entendimento que prevaleceu no Egrégio Colegiado:
“É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana.
Com base nessa orientação, o Plenário, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário em que discutida a constitucionalidade da Lei estadual 12.131/2004, que acrescentou o parágrafo único ao art. 2º da Lei 11.915/2003 do estado do Rio Grande do Sul (Código Estadual de Proteção aos Animais).
Para a Corte, a legislação local está em consonância com a Constituição Federal (CF). Sob o prisma formal, improcede a alegação de inconstitucionalidade ao argumento de a legislação versar sobre matéria penal. O ato normativo impugnado acrescentou ao código estadual situação de exclusão de responsabilidade administrativa na hipótese de abate de animais em cultos religiosos, que em nada se relaciona com a excludente de ilicitude penal.
O caráter penal da legislação, por sua vez, exigiria a definição de fatos puníveis e suas respectivas sanções. O mencionado código estabelece regras de proteção à fauna, define conceitos e afasta a prática de determinadas condutas. Inexiste, portanto, descrição de infrações, tampouco de penas a serem impostas. Dessa forma, a natureza do diploma não é penal, mostrando-se impróprio falar em usurpação de competência da União.
Igualmente não se pode considerar ofensa à competência da União para editar normas gerais de proteção do meio ambiente, sobretudo ante o silêncio da legislação federal acerca do sacrifício de animais com finalidade religiosa. Os dispositivos apontados pelo recorrente (arts. 29 e 37 da Lei 9.605/1988) cuidam tão somente do abate de animais silvestres, sem abranger os domésticos, utilizados nos rituais.
A par disso, as regras federais foram editadas em contexto alheio aos cultos religiosos, voltando-se à tutela da fauna silvestre, especialmente em atividades de caça. O quadro impõe o reconhecimento de que a União não legislou sobre a imolação de animais. A omissão na edição de normas gerais sobre meio ambiente outorga ao estado liberdade para estabelecer regras a respeito, observado o § 3º do art. 24 da CF.
Sob o prisma material, o colegiado asseverou que a temática envolve a exegese de normas fundamentais, alcançando a conformação do exercício da liberdade de culto e de liturgia. A religião desempenha papel importante em vários aspectos da vida da comunidade, e essa centralidade está consagrada no art. 5º, VI, da CF.
Pontuou que o Estado brasileiro tem o dever de proteger as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, § 1º, da CF). Nessa perspectiva, o modo de ser e viver das comunidades, bem como a experiência da liberdade religiosa são vivenciadas com base em práticas não institucionais.
Ademais, entendeu não ter havido violação aos princípios da laicidade e da igualdade. A proteção legal às religiões de matriz africana não representa um privilégio, mas sim um mecanismo de assegurar a liberdade religiosa, mantida a laicidade do Estado. De fato, o Estado não pode estar associado a nenhuma religião, nem sob a forma de proteção nem de perseguição, numa separação formal entre Igreja e Estado. A laicidade do Estado veda o menosprezo ou a supressão de rituais, principalmente no tocante a religiões minoritárias ou revestidas de profundo sentido histórico e social.
A CF promete uma sociedade livre de preconceitos, entre os quais o religioso. A cultura afro-brasileira merece maior atenção do Estado, por conta de sua estigmatização, fruto de preconceito estrutural. A proibição do sacrifício negaria a própria essência da pluralidade cultural, com a consequente imposição de determinada visão de mundo. Essa designação de especial proteção aos cultos de culturas historicamente estigmatizadas não ofende o princípio da igualdade, sendo válida a permissão do sacrifício de animais a determinado segmento religioso, como previsto na norma questionada.
Por fim, a Corte entendeu que admitir a prática de imolação não significa afastar o amparo aos animais estampado no art. 225, § 1º, VII, da CF. Deve-se evitar que a tutela de um valor constitucional relevante aniquile o exercício de um direito fundamental, revelando-se desproporcional impedir todo e qualquer sacrifício religioso quando diariamente a população consome carnes de várias espécies.
Vencidos, em parte, os ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que admitiram a constitucionalidade da lei, porém para dar interpretação conforme à Constituição no sentido de ser estendida a excludente de responsabilidade a cultos de quaisquer religiões que realizem a sacralização com abates de animais, afastando maus-tratos e tortura. O relator ainda condicionou o abate ao consumo da carne. [...]
RE 494601/RS, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgamento em 28.3.2019. (RE-494601)”
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